quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Olhares brilhantes



Inicia-se o fim da soalheira tarde, concentrado na aparente distracção do seu amigo de longa data, coisa em que já reparava de há alguns dias a esta parte, não se contém mais, aproxima-se de Eros, que se encontra inevitavelmente na sua mesinha junto à janela, e pergunta:

- Diz-me então, quando tencionas prosseguir a tua jornada?

Jano tenta imaginar a distância a que Eros se encontra nos seus pensamentos, pelo tempo que levou a absorver o som, ouvir as palavras, interpretar e emitir um som...

- Hmmm
- Seria capaz de jurar que o dia de hoje era o que estava por ti planeado para a partida...
- Oportuna e não menos interessante pergunta que me fazes, meu velho amigo, mas é uma pergunta para a qual não tenho resposta para te dar. E o dia planeado era o de ontem...
- Que tentas tu evitar? Ou será afinal, o que procuras tu encontrar?
- Nada me prende a lugar nenhum, nada me ocorre que possa encontrar em outro lugar que aqui não encontre e sinta sua falta, não vejo portanto motivo algum para partir novamente...
- Percebo-te... mas...
- Será assim tão estranho, Jano?
- Simplesmente não conhecia nestas terras e gentes tão inspiradoras fontes para os teus escritos e gravuras...
- Seria menos estranho se me dedicasse ao fabrico e reparação de chaves e fechaduras?
- Sabes bem que nunca deixaram que me faltasse o pão na mesa! E felizmente não falta nesta terra quem precise de tais préstimos, que assim sempre o seja.
- Bem sei, meu velho, e assim o espero também, como tu sabes!
- Mas não me parece que seja de igual forma para a tua arte! Não vejo tanto freguês que justifique por cá ficares, e desperta-me a curiosidade saber de onde veio esse súbito interesse e diferente olhar de absorção por estas paragens e almas... mas não tens que te explicar!
- Tenho-me sentido verdadeiramente inspirado por aqui, não mais que isso.
- Apesar de em pouco ou nada ter resultado
tanta inspiração?
- A obra tem que ser criada dentro de mim primeiro, só depois a posso mostrar...
- Ou será que não são bem as paisagens mas alguma das nossas gentes que te inspira e suscita tanta observação e pensamento?
- Nada disso, Jano...
- Eu apostaria 10 moedas de ouro!
- Estás assim tão certo de que não perderias tamanha riqueza? Gostaria de saber que justificação darias, chegando a casa. - responde Eros sorrindo
- Ambos sabemos que não as perderia! Só uma dúvida reside em mim...

Eros continua sorrindo ligeiramente enquanto fixa o seu olhar para lá da janela. Jano aproxima-se, e observa também o quadro desenhado da janela para fora. Ficam por momentos absortos em silêncio, observadores... Jano senta-se também.

- Não me vais perguntar que dúvida é?
- E que dúvida é então essa, Jano?
- Qual dos problemas procuras tu, se o da camponesa ou o da nobre, são os únicos que vejo desta janela, e lugares que tens frequentado...
- Problemas?
- Sabes bem, será o único rebento de tal amor.
- Que me dizes? Amarão tais mulheres de forma diferente, ou será que se sentirão amadas de forma diferente? Terá o amor uma forma e gosto diferentes aos olhos e coração de uma camponesa do que o terá de uma dama da corte? Não acredito que sintam o amor de formas diferentes por morarem em casas diferentes, vestirem roupas diferentes e serem olhadas de formas ainda mais diferentes.
- Talvez não, caro Eros, mas ambos sabemos que qualquer uma te trará não menos problemas que a outra, a nossa sociedade não está ainda preparada para alguns amores.
- A sociedade doente e mesquinha da qual teimamos fazer parte, teria verdadeiros problemas bem graves e sérios com se preocupar na sua resolução se o quisesse...
- Prossegue a tua jornada, Eros...
- Jano, deverias ser o último a dizer tais palavras! Teríamos nós tão forte amizade, partilhado tantas aventuras, fantásticas e dramáticas, ao longo de tantos anos, se tivéssemos ouvido o que a sociedade pensava e como julgava a nossa amizade?
- Tento proteger-te só isso...
- Eu sei, e agradeço-te mas não vou submeter-me, ou tão pouco amordaçar o meu coração e desejo às vontades de uma sociedade débil e raquítica de mente e alma!
- ...
- Estarei eu errado, Jano?
- Sabes bem que não, só tento evitar que alguém que é como um verdadeiro irmão para mim, e a minha única família, acabe magoado por alguém que não saberá valorizar as batalhas que terás que travar, pela sociedade que te as fará travar... ou ambas as coisas!
- Não seria capaz de passar ao lado, de fugir a tal chamamento...
- Nunca o fizeste, Eros... coração esse que tu tens!
- No dia em que ele deixa de nos guiar, tornamo-nos meros bonecos de trapos. Não é ele que te faz atravessar o frio e dureza do dia, e às vezes até da noite?
- Aqueles três pares de olhos brilhantes que me abraçam e aquecem no primeiro momento que entro em casa... fariam-me atravessar muito mais que o mero frio ou simples dureza!

Os velhos amigos sorriem mutuamente, olhos brilhantes, conhecem-se bem, sentem-se bem, e sabem bem ver a alegria estampada na face e olhar do outro.

Eros aponta para a velha e gasta estante atrás de Jano...

- O teu cálice... bebe um pouco de vinho comigo e brindemos!
- Digo-te, esta tua mesinha aqui à janela, banhada pelo sol, tem qualquer coisa de mágico!
- Também o sentes, afinal? - diz sorrindo
- Sem dúvida que sim...

Eros serve o seu amigo Jano de vinho, levantam-se e contemplam pela janela o mágico iniciar da noite lá fora, olham-se e brindam...

- Ao amor!
- À amizade!
- À alegria!
- Ao brilho no olhar!
- Aos sentimentos nobres!
- À nossa vida sem falta de nenhuma destas coisas!

Brindam, e saboreiam o vinho na não menos agradável companhia, abraçam-se de forma sentida e despedem-se. Jano deixa o seu grande amigo entregue à janela, à mesinha, ao vinho, aos escritos e gravuras, a si, ao amor. Lá de cima, da sua janela, Eros acende uma vela, e observa o seu amigo que começa a fazer o caminho de casa, ao encontro dos três pares de olhos brilhantes que lhe pagam cada hora do seu dia, o seu olhar está não menos brilhante.

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